Exigir antiguidade de um bem
imóvel para preservá-lo é mais que irônico: chega a ser sarcástico. Afinal,
para que possa ser chamado de antigo, um imóvel precisa sobreviver a algumas
gerações
A polêmica em torno da
demolição da primeira pré-escola municipal de Sorocaba (o Centro de Educação
Infantil número um, localizado na avenida Coronel Nogueira Padilha) teve pelo
menos um efeito positivo, que foi o de demonstrar a ausência de uma política madura
para preservação dos bens históricos, artísticos, paisagísticos e
arquitetônicos da cidade. Mais que isso, o episódio serviu para que se pudesse
aquilatar o quanto a ideia do que possa ser classificado como
"histórico" encontra-se equivocada entre as autoridades, parte da
imprensa e também dos profissionais que, por sua formação e biografia, são
considerados referências no setor.
Com raras exceções, o
conjunto das declarações veiculadas sobre o assunto revela uma concepção um
tanto ortodoxa de "histórico". Para justificar a destruição do
prédio, não foram poucos os que o taxaram de "acanhado" e alegaram
ter sido modificado ao longo do tempo, como se o fato de ter estado em uso
durante mais de 50 anos não justificasse mudanças e adaptações. Por esse mesmo
argumento, a Catedral Metropolitana de Sorocaba e o Palacete Brigadeiro Tobias
- para citar apenas dois exemplos - não mereceriam ser preservados, já que
desde sua construção até muito recentemente passaram por reformas e foram
alterados.
Resta o "acanhamento"
da obra, algo bastante subjetivo. Confunde-se aqui, de maneira evidente, o
valor estético com o valor histórico-cultural. Nem tudo o que é bonito é
histórico. E nem tudo o que é histórico é relevante do ponto de vista artístico
ou arquitetônico. Histórico pode ser um casebre em que nasceu uma personalidade
de destaque; uma caneta comum, com a qual se assinou um tratado de paz, ou até
mesmo a capelinha rústica de um túmulo como o de João de Camargo, que a devoção
popular transformou em local de orações, pedidos e promessas. Pelo acanhamento,
a capelinha de Nhô João também não mereceria ser preservada.
No bojo dessas alegações há
ainda um terceiro equívoco, igualmente generalizado, segundo o qual só merece
ser protegido aquilo que é realmente antigo e representa uma tendência ou
escola arquitetônica bem definida. Exigir antiguidade de um bem imóvel para
preservá-lo é mais que irônico: chega a ser sarcástico. Afinal, para que possa
ser chamado de antigo, um imóvel precisa sobreviver a algumas gerações. E, para
que não seja alterado ao longo do tempo, é preciso que se tenha, desde muito
cedo, consciência de sua importância estética ou histórica, algo que nem sempre
ocorre, já que a valoração muitas vezes é dada por fatos e circunstâncias
posteriores.
Parece óbvio que, para
decidir sobre a preservação, acima mesmo de critérios como antiguidade e pureza
estilística, o que conta de fato é o valor sentimental, ditado por aquilo que o
imóvel representa para a identidade, a memória e os valores de um povo ou grupo
social. Por não ter uma visão clara sobre isso, Sorocaba perdeu muito de seu
patrimônio histórico em décadas passadas e se mostra, ainda hoje, predisposta a
continuar desdenhando seus bens atuais. Conceitos rígidos e carentes de uma
reflexão mais aprofundada tornam a cidade incapaz de reconhecer a importância
de imóveis que contam a história, mesmo quando o principal dos requisitos - a
significância do imóvel no contexto das relações entre a população e a cidade -
é demonstrado de maneira inequívoca.
A persistirem os critérios
hoje utilizados para classificar imóveis históricos, o tempo presente será
lembrado no futuro apenas pelos prédios de grife, assinados por arquitetos
famosos, os palácios e as obras públicas faraônicas. Será preciso recorrer a
fotos e vídeos para conhecer como as pessoas habitam, estudam, trabalham,
interagem e se confraternizam no espaço urbano, uma vez que, daquilo que não é
muito antigo ou arquitetonicamente grandioso - em poucas palavras, do que é
recente ou "acanhado" -, não sobrará pedra sobre pedra.